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3 de outubro de 2013

Dissertando




Lá estava eu odiando uterinamente a minha dissertação de mestrado que não engrena. Já vão dois meses que não consigo dar uma cara mais sustentável pra coisa. Peguei aversão a tudo o que diz respeito a ela: os livros que estou lendo, os meus rabiscos idiotas nas margens desses livros, os adesivos coloridos com que marquei as partes importantes dos livros e que os deixaram com um ar retardado de pirulito, os títulos dos capítulos e subcapítulos do meu trabalho que me dão raiva de tão improvisados, as conversas em torno do tema com que de vez em quando alguma alma bondosa tenta me animar, as minhas fichas de leitura supostamente vintage (na verdade, amadoras) feitas naquelas folhinhas pautadas com as quais o pessoal organizava ficheiros na década de 50, as minhas horas inchadas de megalomania enquanto escrevia o projeto, as minhas horas em desespero e posição fetal na frente o computador vendo um texto que só empaca, a minha escrivaninha zoneada (mas isso meio que sempre foi assim, admito), o meu interesse misterioso e súbito em pesquisar no google qualquer coisa como relógio-de-sol-como-fazer-e-como-funciona, um grande tempo desperdiçado em interesses súbitos e misteriosos como esse, enfim, tudo me desagrada e repugna.

E numa tarde dessas – depois de duas horas passadas na biblioteca da universidade, com meu computador e o arquivo da dissertação abertos, e eu em estado de semi-catatonia – fui passear pela cantina segurando um dos livros sobre o qual estou trabalhando (meu trabalho é sobre livros de literatura e inclusive isso tem me desanimado: estou escrevendo sobre ficção, quer dizer, o que tem me tirado o sono não são nem pessoas e coisas que tenham acontecido de verdade...) e encontrei lá uma amiga. Batemos papo. Até que ela olhou pro meu livro e disse (e eu percebi que não era por filantropia, era um interesse espontâneo e real): “É esse o livro que você tá estudando?” e já foi pegando nele. É literatura contemporânea, não é muita gente que conhece, então conversei um pouquinho a respeito. Foi uma coisa bem simples isso. Mas me deu um estalo pra pensar que aquilo que estou fazendo tem sim uma grande dimensão de realidade: porque tudo o que é humano, seja imaginação, sejam fatos, ocupa um lugar todo especial na realidade. E, afinal, a minha amiga perguntou pelo livro e segurou nele como se num pedaço do mundo, ou seja, como numa coisa que vale a pena. A partir disso acho que eu consigo lembrar por que foi que me apaixonei pelo meu tema de estudo. É o que vou tentar fazer nos próximos dias.
 

Bel 

18 de setembro de 2013

A crônica




Hoje quero compartilhar com vocês uma crônica. A crônica que todo professor acaba vivenciando na escola, diariamente, no seu cotidiano com os seus alunos.

Vamos lá... Sou estudante do quarto ano de Letras, da Universidade Federal do Paraná, e aprendi o que era crônica pela primeira vez aos 11 anos de idade, quando ainda estava na quinta série. Nunca dei muita importância para esta forma tão “corriqueira”, “cotidiana” e “pouco poética” de narrar.  Descobri em sala de aula, como professora, que nunca aprendi e internalizei tão bem este gênero. Estranhamente nós somos pagos para ensinar, contudo nós sempre somos os que mais aprendemos nessa empreitada docente. 

Meus alunos tem exatamente 11 anos, idade com a qual aprendi o que era crônica. Ensinei todos os conceitos perfeitamente. Fizemos ficha do assunto. Lemos milhões de crônicas em sala. Diferenciamos de outros gêneros. Tudo nos conformes. Alguns alunos se empenhavam mais, outros mais ou menos e outros simplesmente desprezavam a disciplina. Após todos os blas blas blas sobre crônica, pedi que eles produzissem uma, aplicando tudo o que eles aprenderam e viram nas leituras.

Todos escreveram a tal da crônica exigida pela professora. Muitos falaram de zumbis, planetas X, galáxias ainda não descobertas e extraterrestres; muitos ainda fizeram um relato pessoal, como uma espécie de diário, porém teve uma redação, sem parágrafo, com milhões de erros ortográficos, do aluno mais indisciplinado da turma, que seguiu os padrões do gênero e escreveu a tal da crônica.

A história era de um menino que viu seu pai aparecer com outra família repentinamente. De um menino que não sabia bem o que faria nos seus próximos dias já que estava sem o pai. Diálogos com a irmã narrando o horror e a tristeza cotidiana. O pai morando longe e o drama diário desse personagem que não sabia muito bem o que faria. Para muitos isso poderia ser um conto, mas para esse aluno era de fato uma crônica, já que, bem, estava contando o cotidiano de uma criança, uma criança que representava ele mesmo na vida real. A crônica, que para mim não passava de muitos conceitos fechados que serviam como uma forma de caracterizar este gênero, fez parte da vida do meu aluno, a ponto dele ter encontrado nela uma forma de mimetizar a sua vida.

Na verdade, essa tarefa que atribuí a eles me fez aprender que ser professor te faz aprender com todos os alunos, inclusive os indisciplinados e que não aparentam ser muito promissores no futuro.  Aprendi que nem sempre o melhor da sala, apesar de ter decorado ou estudado assiduamente os conteúdos, é o que compreendeu melhor. Aprendi ainda que a delícia de ser professor está justamente na surpresa que os pequenos sempre pregam na gente.

Ser professor é entrar todo dia em sala com uma aula pronta e muitas vezes perceber que na verdade a sua aula estava muito superficial para a profundidade dos seus alunos. É encontrar o amor nos olhinhos deles atentos em você. É aprender diariamente a simplicidade e a espontaneidade da vida, que a gente sempre acaba perdendo um pouco quando nos tornamos adultos. A Crônica nunca foi tão real como depois dessa redação.


Por Ana Karla Canarinos

6 de fevereiro de 2013

Chocolate meio-amargo


Acabo de ler esse conto incrível do David Foster Wallace (DFW, daqui pra frente) chamado “A pessoa deprimida”. O DFW é um autor americano que escreve insanamente bem e que eu, pra minha vergonha e tristeza (como, até agora, consegui viver sem ele?!), conheço há tão pouco tempo que nem sou capaz de pronunciar mais nada a respeito do sujeito a não ser esse juízo bobo e encantado: o cara escreve bem pacas.

Pois esse conto fala de uma mulher depressiva, tão obcecada com seu próprio estado depressivo que a maior parte da sensação de sufocamento que o conto te provoca (e ele é genialmente construído numa rede de comentários e notas de rodapé num jargão psiquiátrico conscientemente irônico e exaustivo) provém antes do autocentramento sufocante, onipresente e pesadelístico dessa personagem (cuja sensação você, leitor, melhor experimenta do que racionalmente compreende) do que de uma descrição objetiva ou razoável da doença de que ela sofre. A genialidade está, me parece, em abolir qualquer chance de julgamento objetivo: no final ficamos mesmo sem saber se a pessoa deprimida em questão merece nossa ilimitada compaixão e tolerância inesgotável ou se na verdade o melhor que podemos fazer por ela é dar-lhe, isso sim, um tremendo chacoalhão e mandá-la parar de ser tão irritantemente infantil e autocentrada e depois mandá-la praquele lugar, quem sabe.  O genial é que essa impossibilidade de julgar que nos toma enquanto leitores é justamente o que caracteriza (ou uma das coisas que caracterizam) o estado de alguém que sofre de depressão. A incapacidade ou imensa dificuldade de tomar decisões, ao lado de um autocentramento que paralisa e esgota, é um traço frequente no quadro clínico da pessoa deprimida. Isso por um lado. E, por outro, a impossibilidade (ou pelo menos dificuldade) de julgar, junto com algum nível de excesso de preocupação com o próprio estado psicológico, parece ser uma característica mais ou menos generalizada da vida adulta urbana na pós-modernidade da qual poucos de nós conseguem escapar (e agora vou ali esfregar pimenta na língua pra ver se paro de falar bobagem enrolada).

Eu não tenho depressão e também não tenho interesse em ter, obrigada – às vezes desconfio que exista essa espécie de mercado sutil (ou nem tão sutil) pronto pra te empurrar algum distúrbio psicológico com o qual você pode etiquetar algum aspecto mais espinhoso e idiossincrático da sua vida e assim supostamente amenizá-lo ou resolvê-lo – não tenho nenhum interesse em ter... mas muitas vezes é exatamente o mesmo tipo de indecisão e autocentramento paralisante que me atormenta e, ao mesmo tempo, faz eu me sentir especialmente única, até eu enfim me dar conta de que essa indecisão e esse autocentramento não são nada idiossincraticamente meus e nem misticamente me escolheram pralgum papel ou missão pra qual sou insubstituível, mas são sim, a indecisão e o autocentramento, coisas, tchan-tchan-tchan-tchan, meramente humanas. O que não nos torna menos especiais e idiossincráticos, a nós, que desse dado generalizado padecemos (do mesmo modo que compartilhar outros dados comuns ao gênero humano, tais como ter fome, frio e sono, não nos faz menos especiais, únicos, insubstituíveis, cada um de nós. Porque eu sinto fome igual a todos vocês, mas às vezes a minha fome só pode ser saciada por uma combinação exata e quase irreproduzível de brigadeiro, bolacha maisena e geleia de damasco. Aberrantemente único. Brincadeira[1].)

(E não parei de falar bobagem enrolada... tsc.)      

O que o DFW acaba de me fazer pensar com esse conto genial dele é que pra cada vez em que eu me sinto linda e insuportavelmente única por, de um jeito supostamente muito estranho, só conseguir aplacar alguma angústia existencial de origem variada com um pedaço de chocolate meio-amargo eu poderia, ao invés disso, ter perdido meio minuto considerando que alguém, nalgum outro recanto, sente talvez uma angústia mais afiada que a minha e pensa em uma forma ainda mais inédita e estranha de aplacá-la. E com isso eu entenderia um pouco mais do mundo.  

Nota: DFW sofria de uma depressão profunda e crônica desde a adolescência e que foi a causa da sua morte aos 46 anos de idade. A experiência pessoal da doença a meu ver só tornam o conto “A pessoa deprimida” ainda mais pungente, complexo e interessante. Este meu texto não tem, portanto, qualquer intenção de desqualificar as pessoas que sofrem com a doença em questão e muito menos questionar a existência médica e real deste e de outros distúrbios psiquiátricos. No mais, leiam o conto dele (além de tudo o que dele quiserem e puderem encontrar...).

Por Hannah




[1] Ou melhor, quase verdade. Na real a combinação que sacia a minha fome exclusiva inclui ainda um pedaço de chocolate meio-amargo em estado de semi-liquefação. 

DFW