17 de dezembro de 2014

Alimento




Olhou com ojeriza para a comida, era gourmet, mas cheirava a morte, assim como todo o resto em volta.
A vida que outrora lhe parecia fácil e alegre tomou ares de farsa.
Palavras lançadas ao vento.
Pequenas decepções cotidianas.
Perdas.
Traições.
Desânimo.
Fraqueza.
Perdera o tempero...

Abriu o livro e leu a dedicatória:
“Ser teu pão, ser tua comida e todo o amor que houver nessa vida.”

Um sentimento de gratidão a inundou.
Sentiu-se forte para recusar a valsa dos mortos-vivos que a circundava e renovou seu desejo de se fazer, também, alimento.

Sophia


9 de abril de 2014

Bodas de Diamante



Na manhã do dia 15 de março de 1954 (uma segunda feira), Marcus, apaixonado e enamorado, disse sim a Yvonne que, apaixonada e enamorada, disse sim ao Marcus e assim o meu nome e o nome dos meus irmãos puderam ser inscritos no livro da vida.
Obrigado!
Há muito o que comemorar.
Quanta alegria e felicidade se sobressaem em meio às dificuldades, contrariedades e tristezas que a vida lhes trouxe nestes 60 anos, forjando um amor pleno.
O amor de 1954 chegou a 2014 cheio de razão, selado e amadurecido pela fé, esperança e sobretudo pela caridade.
Amor cheio de razão, pois amar é mais do que paixão, é decisão.
Decisão livre de entregar o único e verdadeiro bem que possuímos: a liberdade e assim tornar-se prisioneiro do outro.
Esse é um amor que se realiza no eterno.

Luiz

2 de abril de 2014

A tragédia do outro também é a nossa tragédia




Durante o passar dos dias vivenciamos diversos acontecimentos, alguns que são mera rotina e outros que nos suscitam maior reflexão e até mesmo empatia em relação ao mundo dos outros. Hoje foi um dia desses. Ao ler sobre o caso da mãe de família, baleada em uma troca de tiros em uma comunidade carioca, jogada no porta-malas de uma viatura policial e depois arrastada por alguns metros, acabei por me colocar no lugar das pessoas que vivem naquela comunidade, e dos seus familiares em particular.

Li a notícia e assisti ao depoimento da filha adolescente da vítima. Mesmo estando distante dos fatos, socialmente e espacialmente, confesso que a imagem extrema da violência diária que aquelas pessoas sofrem me instigou certa tristeza e uma revolta interior. Entretanto, o que mais me tocou foi o depoimento da filha, que continua a luta da vida mesmo com a dor da perda, denunciando o modo pelo qual aquela gente sofre na pele, negra por sinal, a marginalização e o estigma da criminalidade.

O depoimento é claro, "eles pensaram que ela era bandida", "acharam que ela estava levando café para os traficantes". Juízo prévio realizado em minutos, ou talvez até segundos. A condenação já estava realizada, mesmo sem o julgamento. E mais, é assustador ter a certeza de que o tratamento dispensado a esta mulher jamais ocorreria em um bairro nobre da mesma cidade. Tragédia extrema na qual a dor da família pela perda foi tratada com muita hostilidade.

Continuo insistindo o quanto é triste e ao mesmo tempo revoltante assistir o depoimento da filha, ainda em luto pela perda da mãe. Não há como não compartilhar esses sentimentos. Com simplicidade e grande força, a garota apresenta um testemunho revelador de todos os abusos das autoridades estatais, triste denúncia de que aqueles que moram no morro não tem vez. Serão sempre julgados, pelo Estado, pela mídia e por todos. Infelizmente, essa é a dura realidade daqueles que se encontram do outro lado, e na qual nós jamais poderemos compreender plenamente.
 
Só tenho a dizer que lamento profundamente, mesmo sabendo da incompletude do meu sentimento de empatia por essas pessoas, que choraram a perda de uma mulher, mãe de família, que certamente fará muita falta para aqueles que a estimam. A empatia é justamente isso, nos colocarmos no lugar do outro, sentirmos parte da dor e da tragédia do outro, de modo a nos tornarmos um pouco mais humanos, apesar de toda a estupidez que existe. Talvez a humanidade necessite desse exercício diário.


Flávia Regina

26 de março de 2014

Tão longe, tão perto




Quando eu deixei a minha cidade, a minha família, os meus amigos, a minha casa e os meus cachorros para cair nessa imensidão que é São Paulo e começar a faculdade dos meus sonhos, eu não fazia ideia do que realmente significava isso. 
Não imaginava que ia ser tão doce e tão amargo. Não imaginava que ia me sentir tão distante e tão próxima.
Estar longe dói com frequência. Não fazer parte do dia-a-dia de quem você ama é uma ferida constantemente aberta.
Mas ao mesmo tempo carrego todas elas, seus rostos, seus jeitos, seus cheiros, seus sorrisos, carrego-as no meu coração de um jeito que eu não fazia quando estava fisicamente perto. A distância muda o amor. Mas não na intensidade, somente na sua forma. Aprendi a amar de longe, e isso alargou meu coração. Alargou tanto que já começo a amar tudo isso que me é novo na vida. E multiplicam-se os rostos que eu carrego comigo. 
Me vejo alegre. Alegre porque fui capaz de escolher e minha escolha me transformou. Hoje vivo com mais peso. Com mais sentido, mais direção e mais magnitude (veja só, sou quase um vetor!). 
Mas a alegria maior está em saber que a mudança não termina. Viver é mudar, e crescer, e transformar, e aprender, e lutar. E em meio a tudo isso a gente ama. Ama os outros, ama as lutas, ama os dias. E o que era no início amargo se torna, gradualmente, cheio de doçura.


Adélia 

19 de março de 2014

Turquia




O dia em que decidi ir para a Turquia foi o dia em que já tinha me afogado em sofrimento. O meu namoro de quase seis anos havia se esvaído e aquele em que tanto confiava assumiu nunca ter verdadeiramente me amado. Eu tinha vivido seis anos pra ele. Seis anos em que não sabia quem eu era. E a minha viagem era a minha chance de tentar me descobrir. Cheguei num país diferente para encontrar uma amiga há tempos não vista na esperança de viver algo diferente. A Turquia se revelou pra mim uma cura. A convivência com pessoas que vivem com princípios de hospitalidade e respeito para com qualquer cliente, visitante ou passante me ensinou que devemos respeitar o outro. A cada chá oferecido gratuitamente para que eu me sentisse mais acolhida na loja, casa ou restaurante eu sabia que algo mudava em mim também. Em um momento, por exemplo, uma garota que sentou ao meu lado no ônibus de viagem e que sequer conseguia se comunicar comigo me comprou brownies. Simplesmente para que eu pudesse estar bem naquela viagem. Sem interesse algum. E essa foi apenas uma das histórias emocionantes.  Passei meu aniversário em Éfeso, na Turquia, entre ruínas de uma cidade que foi grega, romana e otomana. Longe de tudo e de todos, inclusive da minha amiga turca que ficou em Istambul. Estava em Éfeso e depois em Pamukkale e ainda na Capadócia. Sozinha. Mas em cada tour conheci gente do mundo todo. Fiz amigos, dei risadas e, embora sozinha em minhas descobertas, em nenhum momento me senti solitária. Pessoas diferentes me enriqueciam de mim mesma. Então voltei para Istambul para reencontrar minha amiga depois da viagem pelo interior da Turquia e pelo meu interior, e fui surpreendida por um bolo de aniversário, parabéns e presentes. Chorei de emoção vendo que existe amor sem precedentes no mundo. Existe amor sem limites. Um amor que transcende preconceitos, religião, costumes e crenças. E ele está dentro de mim. Precisei viajar para encontrar a mim mesma e ao meu amor. E foi na Turquia que me conheci. Um país que não é cheio de camelos, que não é radical com o islamismo e onde as mulheres têm voz e podem sim andar sozinhas sem medo. Fui extremamente bem tratada por todos que conheci. Aprendi a me sentir especial e hoje me respeito e me amo. Sozinha talvez, nunca solitária. Tenho dentro de mim as lembranças. Tenho dentro de mim tudo que não sabia que eu tinha. Tenho uma vida que vale a pena ser vivida. E que sempre valerá, não importa o que aconteça.

C. S.

12 de março de 2014

Amoramigo




Não é o dos poemas mais românticos, do jantar a luz de velas ou da ansiedade pelo primeiro encontro. Talvez, um dia (quem sabe?), até seja, mas o de hoje não é. O amor amigo é o do “porque não nascemos filhos/as da mesma mãe?” ou do “porque não nos conhecemos antes?”. É o clichê, desde “a família que nos permitiram escolher” até o “pede pra minha mãe pra eu dormir na sua casa?”. É o amor primeiro, é o que todos deveriam ter por direito e é o que nos ergue quando falta chão pra pisar. Esse amor é aquele que aparece quando você olha lá pra cima e pergunta se não tem mais nada de ruim pra acontecer com você, ou quando você está convicto de que já não existem meios de se ter “fé na vida, fé no homem, fé no que vier”.

Há um tempo (um ano, nem muito e nem pouco, mas o suficiente para que eu processasse todas as informações), resolvi embarcar, me enfiar de cabeça, mais especificamente falando, num sonho escondido: viajar para outro país, sozinha, e morar lá por um tempo. Eu tinha, como era de se esperar, todos os tipos de medo: de me perder, não entender a língua, ir mal nos estudos ou morrer de saudades da minha casa. Mas o medo maior, aquele que tirava o sono e molhava o travesseiro, era o de perder o lugar que eu tinha na vida das pessoas, na vida dos meus amigos. Querendo ou não, a gente sabe que família está ali, família é quase sempre fixa. Mas amigo... ah! Amigo a gente rega, aduba, assiste crescer todo dia.

Mas, e se eles se acostumarem com você longe? E se for verdade que “quem tanto se ausenta um dia deixa de fazer falta”? E se VOCÊ se acostumar sem eles? E se na hora de voltar já não existir seu espacinho na vida de cada um?


E aí vem a vida como um belo “há-há-há” bem no seu nariz. Afinal de contas, você mal sabe o que vem pela frente. Você não faz ideia de que todo o colorido da sua viagem virá deles, os amigos. E agora em dose dupla. Agora você vai conhecer quem estará contigo em uma das maiores e melhores experiências da sua vida, aprender a sentir saudade pra sempre e a confiar que amigo não tem regra, não expira. É engraçado como a gente passa a perceber e aceitar que na vida há quem apareça para ficar e há quem está só de passagem, e nenhum deles é mais ou menos importante. De algum jeito maluco e incompreensível, as pecinhas desse quebra cabeça vivo vão se encaixando. Quem tinha que ficar o fez, e você nunca vai saber como agradecer por isso. Quem precisou ir foi, e os motivos talvez não precisem ser entendidos. Quem quis aparecer? Esses vieram também, oras! Seus presentes de boas-vindas. E os que você precisou deixar, não porque quis, mas porque precisou... esses andam com você a cada sorriso que você dá e cada vez que seus olhos piscam, seu coração bate ou sua mente viaja. Eles hoje são parte de quem você é, de quem você se fez, de quem você aprendeu a ser.

Tha

26 de fevereiro de 2014

Veranil e sinestésico




Saí do carro depois da chuva e o céu estava azul. Olhei pra cima e pela ausência de nuvens aquele azul aveludado e úmido parecia estar a um palmo do meu rosto. Quis lamber o céu, mas ele já me lambia e refrescava. E nessa ilusão de ótica veranil e sinestésica eu me senti submersa no mundo, igual a quando mergulho e fico parada sentindo a água me sustentando e abraçando de todos os lados. e então eu me senti em casa.


Menina das cartas

9 de janeiro de 2014

Dick and Jane


A Jane veio me cumprimentar, me perguntava onde estaria o Dick quando me lembrei que ele tinha morrido. Já não me lembrava há quanto tempo, mas não a tinha visto desde então. Há dois anos que não vinha para o Alabama.
Desatei a chorar pela notícia recebida há meses (que não me fez chorar na ocasião).
Conheci a Jane e o Dick logo que meus pais chegaram no Alabama cinco anos atrás. Ficava admirada com a disposição deles de irem à missa todos os dias às 6e20 da manhã (apesar de aposentados ainda trabalhavam ajudando os imigrantes mexicanos). Lembro-me quando o Dick se apresentou para nós, disse que Dick e Jane eram os nomes mais óbvios para casais nas histórias americanas. Todos os dias, o Dick nos cumprimentava com um sorriso, esperando que déssemos boas noticias sobre a nossa adaptação.

Hoje quando vi a Jane sozinha desatei a chorar não só pela saudade que ela deve sentir do Dick, mas porque senti o mundo muito mais triste com a sua ausência. Não tinha me dado conta, mas acho que esperava encontrar o sorriso esperançoso dele logo na saída.

Mari

1 de janeiro de 2014

Pôr do Sol


Hoje resolvi caminhar lá fora, no final da tarde. Diferente das outras vezes, caminhei no sentido contrário, de propósito, para que, na volta, pudesse assistir ao maravilhoso pôr do sol que esta cidade em que vivo nos proporciona.
Queria ter uma cadeira comigo e mudá-la de lugar, e viver em um planeta pequeno, que pudesse ter 43 pores de sol num dia na Terra.
E hoje o pôr  de sol me fez chorar. Não era o mais lindo de todos, as nuvens encobriam parte do sol. Mas era lindo mesmo assim. Era como se ele enchesse o meu coração de uma certeza: a de que as maiores riquezas que temos; o pôr do sol, o amanhecer, uma criança a brincar, um sorriso amigo de quem se ama, um amigo que reencontramos, são presentes que nenhum dinheiro no mundo pode pagar, não tem preço. E as lágrimas que derramamos quando nos deparamos com elas são aquelas que nos trazem de volta aquilo que somos.

Eve