6 de fevereiro de 2013

Chocolate meio-amargo


Acabo de ler esse conto incrível do David Foster Wallace (DFW, daqui pra frente) chamado “A pessoa deprimida”. O DFW é um autor americano que escreve insanamente bem e que eu, pra minha vergonha e tristeza (como, até agora, consegui viver sem ele?!), conheço há tão pouco tempo que nem sou capaz de pronunciar mais nada a respeito do sujeito a não ser esse juízo bobo e encantado: o cara escreve bem pacas.

Pois esse conto fala de uma mulher depressiva, tão obcecada com seu próprio estado depressivo que a maior parte da sensação de sufocamento que o conto te provoca (e ele é genialmente construído numa rede de comentários e notas de rodapé num jargão psiquiátrico conscientemente irônico e exaustivo) provém antes do autocentramento sufocante, onipresente e pesadelístico dessa personagem (cuja sensação você, leitor, melhor experimenta do que racionalmente compreende) do que de uma descrição objetiva ou razoável da doença de que ela sofre. A genialidade está, me parece, em abolir qualquer chance de julgamento objetivo: no final ficamos mesmo sem saber se a pessoa deprimida em questão merece nossa ilimitada compaixão e tolerância inesgotável ou se na verdade o melhor que podemos fazer por ela é dar-lhe, isso sim, um tremendo chacoalhão e mandá-la parar de ser tão irritantemente infantil e autocentrada e depois mandá-la praquele lugar, quem sabe.  O genial é que essa impossibilidade de julgar que nos toma enquanto leitores é justamente o que caracteriza (ou uma das coisas que caracterizam) o estado de alguém que sofre de depressão. A incapacidade ou imensa dificuldade de tomar decisões, ao lado de um autocentramento que paralisa e esgota, é um traço frequente no quadro clínico da pessoa deprimida. Isso por um lado. E, por outro, a impossibilidade (ou pelo menos dificuldade) de julgar, junto com algum nível de excesso de preocupação com o próprio estado psicológico, parece ser uma característica mais ou menos generalizada da vida adulta urbana na pós-modernidade da qual poucos de nós conseguem escapar (e agora vou ali esfregar pimenta na língua pra ver se paro de falar bobagem enrolada).

Eu não tenho depressão e também não tenho interesse em ter, obrigada – às vezes desconfio que exista essa espécie de mercado sutil (ou nem tão sutil) pronto pra te empurrar algum distúrbio psicológico com o qual você pode etiquetar algum aspecto mais espinhoso e idiossincrático da sua vida e assim supostamente amenizá-lo ou resolvê-lo – não tenho nenhum interesse em ter... mas muitas vezes é exatamente o mesmo tipo de indecisão e autocentramento paralisante que me atormenta e, ao mesmo tempo, faz eu me sentir especialmente única, até eu enfim me dar conta de que essa indecisão e esse autocentramento não são nada idiossincraticamente meus e nem misticamente me escolheram pralgum papel ou missão pra qual sou insubstituível, mas são sim, a indecisão e o autocentramento, coisas, tchan-tchan-tchan-tchan, meramente humanas. O que não nos torna menos especiais e idiossincráticos, a nós, que desse dado generalizado padecemos (do mesmo modo que compartilhar outros dados comuns ao gênero humano, tais como ter fome, frio e sono, não nos faz menos especiais, únicos, insubstituíveis, cada um de nós. Porque eu sinto fome igual a todos vocês, mas às vezes a minha fome só pode ser saciada por uma combinação exata e quase irreproduzível de brigadeiro, bolacha maisena e geleia de damasco. Aberrantemente único. Brincadeira[1].)

(E não parei de falar bobagem enrolada... tsc.)      

O que o DFW acaba de me fazer pensar com esse conto genial dele é que pra cada vez em que eu me sinto linda e insuportavelmente única por, de um jeito supostamente muito estranho, só conseguir aplacar alguma angústia existencial de origem variada com um pedaço de chocolate meio-amargo eu poderia, ao invés disso, ter perdido meio minuto considerando que alguém, nalgum outro recanto, sente talvez uma angústia mais afiada que a minha e pensa em uma forma ainda mais inédita e estranha de aplacá-la. E com isso eu entenderia um pouco mais do mundo.  

Nota: DFW sofria de uma depressão profunda e crônica desde a adolescência e que foi a causa da sua morte aos 46 anos de idade. A experiência pessoal da doença a meu ver só tornam o conto “A pessoa deprimida” ainda mais pungente, complexo e interessante. Este meu texto não tem, portanto, qualquer intenção de desqualificar as pessoas que sofrem com a doença em questão e muito menos questionar a existência médica e real deste e de outros distúrbios psiquiátricos. No mais, leiam o conto dele (além de tudo o que dele quiserem e puderem encontrar...).

Por Hannah




[1] Ou melhor, quase verdade. Na real a combinação que sacia a minha fome exclusiva inclui ainda um pedaço de chocolate meio-amargo em estado de semi-liquefação. 

DFW



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